terça-feira, fevereiro 12, 2008

A FANTÁSTICA MULTIPLICAÇÃO DE BOB DYLAN

I’M NOT THERE
Idem. EUA,2007. De: Todd Haynes. Com: Christian Bale, Cate Blanchett, Marcus Carl Franklin, Richard Gere, Heath Ledger, Ben Whishaw, Charlotte Gainsboug, Bruce Greenwood, David Cross, Juliana Moore, Michelle Williams.
Um dos melhores filmes de 2007 e talvez a melhor cine-biografia de uma artista pop já realizada para o cinema. Fugindo dos convencionalismos inerentes ao gênero e tão fartamente demonstrados em obras recentes como “Ray” (2004) e “Dreamgirls”(2006) - onde a narrativa burocrática, pontuada por flashbacks e passagens históricas, e os números musicais milimetricamente coreografados cheiravam a perfumaria barata - o filho do “cinema independente” americano Todd Haynes subverte a ordem cinematográfica vigente e concebe a história do papa do folk Bob Dylan pelo prisma da fantasia e do anti-convencionalismo. Nada mais óbvio para um cineasta que já estreou em 87 com outra cinebiografia polêmica: o média-metragem “Superstar”, onde a vida da cantora Karen Carpenter, vitimada pela anorexia, era personificada por uma boneca Barbie(!). Por não ter autorização da família e muito menos o direito de uso das músicas, a obra nunca foi exibida comercialmente e tornou-se objeto de culto em festivais alternativos e sessões undergrounds.
Neste “I´M Not There”, o que vemos na tela não é Dylan, mas sim as várias faces do artista personificadas por um séquito de atores de idades e sexos distintos. Sem seguir ordem cronológica, o roteiro é concebido como um mosaico de vários episódios que procuram registrar uma década (metade dos anos 60 até início dos 70) da carreira do artista, desde a sua consagração no cenário musical como cantor folk de protesto até a sua conversão ao cristianismo. A narrativa complexa também abre espaço para passagens ficcionais da vida de outros artistas que foram as grandes influências de Dylan. Assim sendo, acompanhamos lampejos da infância do trovador Woody Guthrie (composição espontânea do talentoso ator-mirim Marcus Carl Franklin), primeira referência musical de Dylan, no momento em que ele foge do interior sulista em busca da fama como clandestino num trem de carga; presenciamos um Billy The Kid (Richard Gere), envelhecido e aposentado da vida de crimes, em busca de redenção numa cidadezinha do velho Oeste; e, por fim, o poeta Arthur Rimbaud expondo comentários e frases sardônicas numa espécie de interrogatório improvisado onde a câmera só capta o rosto do ator inglês Bem Winshaw (revelado no filme “Perfume”) diante de um júri subjetivo.
A figura do próprio Dylan aparece na tela através de três alteregos: Jack Rollins, um astro folk no auge da carreira, mas cheio de dúvidas existenciais que culminam com o abandono de tudo em nome da fé ( personagem coroado com uma composição primorosa de Christian Bale, o melhor do elenco e o que mais se aproxima da persona peculiar de Dylan); O ator Robbie Clark (Heath Ledger) que entra em crise com a mulher francesa (Charlotte Gainsbourg) à mesma época em que interpreta o astro Jack Rollins no cinema; e o astro pop Jude Quinn (Blanchett de peruca, mais parecida com a nossa cantora Simone, do que com Dylan) que enfrenta rejeição por parte do público e da crítica ao tentar mudar os rumos musicais de sua carreira, abandonando o folk e mergulhando de cabeça no efervescente rock´n roll.
Entremeando a ação e contracenando com esses seis personagens, o complexo roteiro apresenta passagens reais da vida de Dylan (o lendário acidente de motocicleta;a hilária cena onde ele ensina os quatro Beatles a fumar maconha), momentos romanceadas e relata encontros do cantor com outros ícones do século XX (Os já citados Beates, Allen Ginsberg e outros). Tudo mesclado com canções consagradas de Dylan usadas em sequências inteiras e especialmente regravadas, para o filme, por artistas contemporâneos.
O título, estranho a princípio, resume bem o espírito anárquico do filme. Dylan “não está lá” fisicamente, mas a sua essência faz-se presente em cada fotograma. Os aficcionados pelo astro irão identificar, de imediato, cada referência, assim como os personagens reais soltos no roteiro. Outros irão estranhar tantas histórias contadas de forma desordenadas e sem um núcleo comum, mas ninguém ficará indiferente ao poder visual deste vídeo clipe lisérgico de mais de duas horas de duração sobre um dos ícones incontestáveis do Século XX.