domingo, junho 25, 2006

O VÔO DA MORTE

UNITED 93
Idem. EUA/Ingl./Fran., 2006. De: Paul Greengrass. Com: Christian Clemenson, Trish Gates, Polly Adams, Cheyenne Jackson, Opal Alladin, Gary Comok. OP/DR. 91 min.
Primeiro filme comercial a tratar da tragédia que acometeu os Estados Unidos no dia 11 de setembro de 2002 (o segundo está sendo finalizado por Oliver Stone e deverá estrear ainda este ano nos EUA). De forma inteligente, o diretor Greengrass centralizou a história no vôo da aeronave United 93, o único dos quatro aviões seqüestrados que não atingiu o seu objetivo final e caiu num campo do interior da Pensilvânia. Enquanto os dois primeiros chocaram-se contra as torres gêmeas do World Trade Center e o terceiro contra o Pentágono, o vôo em questão estaria a caminho de Washington, tendo como alvo o Capitólio.
Mesclando de forma hábil o suspense gerado pelo clima claustrofóbico do interior da aeronave, com a ação e o empenho das cenas passadas nas torres de controle aéreo, onde militares e civis assistem absortos a destruição de monumentos e a queda “simbólica” do império americano, o filme prende a atenção desde o início, onde acompanhamos os preparativos e a concentração silenciosa daqueles quatro homens prestes a cometer um ato extremo em nome da fé e de ideais questionáveis.
Baseado no relato dos passageiros, que conseguiram entrar em contato com as famílias antes da queda do avião usando os celulares, em dados coletados nos relatórios da comissão de investigação e nas informações da caixa preta do avião, o roteiro é hábil ao gerar expectativas sobre uma história da qual já sabemos o final e ao registrar o suposto empenho de alguns passageiros que tomaram as rédeas da situação e tentaram enfrentar os seus algozes. O filme deixa evidente o nervosismo e o despreparo dos terroristas, e a demora por parte das autoridades norte americanas em tomar uma atitude mais rápida contra o perigo iminente.
United 93 é uma crônica eficaz sobre uma tragédia anunciada, constituída por uma ágil montagem, um elenco desconhecido e competente (escolha acertada do diretor, pois a história por si só já é forte o suficiente e a presença de um astro desviaria a atenção) e a dose exata de drama e suspense. Ponto para o diretor, que iria dirigir o terceiro filme da série dos X-Men, e acertadamente optou por este projeto. A sua câmera nervosa está presente e o timing para a ação continua intacto. Preparem-se, pois o filme é um jogo de nervos a flor da pele.

sábado, junho 24, 2006

O JAPÃO POP

É tão raro a comercialização de filmes nipônicos por estas praias, que o registro deste evento torna-se imprescindível: "Entre os dias 28 de junho a 16 de julho o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo, receberá a mostra "JAPÃO POP-O NOVO CINEMA JAPONÊS". O evento apresenta um panorama inédito no Brasil da cultura jovem do Japão atual, a partir do olhar de alguns de seus mais importantes e originais cineastas contemporâneos. Foram escolhidos filmes que "refletem e revelam tanto nos aspectos da produção quanto na temática, o que de mais novo está ocorrendo na arte no Japão deste início de milênio", diz Marcos Mantoan, gestor do CCBB. Além da apresentação dos filmes, serão realizadas palestras (sempre aos sábados), que abordarão o surgimento deste cinema e a visão de seus autores.

FILMES
Blue Spring (foto acima) (Aoi Haru)2000, 35 mm, 14 anosDir. Toshiaki ToyodaSufocados e entediados pela vida de estudante, Kujo e seu amigo de infância Aoki acabam de entrar, juntos com outros colegas, no colegial. Em um perigoso jogo onde eles saltam e batem palmas até se segurarem de volta no parapeito da cobertura do edifício da escola, é decidido quem vai comandar o grupo, e a escola. Kujo alcança um novo recorde de oito palmas. Mas para ele, vencer o jogo e comandar a escola parecem não importar nem um pouco. Incomodado com essa atitude de Kujo, Aoki repentinamente muda de visual e comportamento, entrando em rivalidade com seu antigo amigo.Primeira adaptação para cinema de um livro do popular artista de "mangas" Matsumoto Taiyo, Blue Spring é uma reflexão sobre os problemas e ansiedades de um grupo de estudantes do ensino secundário. Com sua história totalmente centrada na vida dentro do ambiente escolar, que é tratado quase como um universo à parte, o filme mostra a difícil busca da individualidade dentro das relações de poder e de necessidade de auto-afirmação dos jovens estudantes.

Electric Dragon 80.000 V (Electric Dragon 80.000 V)2000, 55 min, Vídeo, 12 anos.Dir. Sogo IshiiQuando criança, ao subir em uma torre de alta tensão, "Dragon eye" Morrison sofreu uma descarga elétrica que o carregou com a força de 80.000 Volts. Agora ele divide seu tempo entre explosões de violência, tocar sua guitarra e procurar lagartos perdidos. Thunderbolt Budd, um perito em eletricidade com o mesmo poder de Morrison, ao descobrir sua existência resolve torná-lo seu rival e atraí-lo para um duelo. Até que os dois finalmente se encontram em uma batalha com a carga de relâmpagos.O filme, além de reassumir uma forma anarco-punk dos anos 80, ressalta o submundo dos becos e telhados de Tókio, em uma linguagem visual que deve muito à arte dos mangás. Com uma trilha sonora punk e barulhenta, seu caráter audacioso é reafirmado pela presença de dois grandes ídolos do cinema japonês (Tadanobu ASANO e Masatoshi NAGASE) nos papéis principais, não escolhidos por acaso, segundo Ishii, que mostra, literalmente, a sua intenção de chocar o público.

Female (Fimeiru) 2005, 118 min, 35 mm, 16 anosDir. Tetsuo Shinohara, Ryuichi Hiroki, Suzuki Matsuo, Miwa Nishikawa, Shinya TsukamotoFEMALE é uma coleção de cinco curtas eróticos, baseados em contos de escritoras de sucesso japonesas e dirigidos por importantes diretores, que revelam a natureza, a força, as fraquezas e os instintos de cinco mulheres de gerações diferentes.

Firefly (Hotaru)2000, 164 min, 35 mm, 16 anosDir. Naomi KawaseAyako é uma dançarina de striptease em depressão após sofrer um aborto e terminar seu relacionamento com um namorado abusivo. Daiji é um solitário artesão que produz cerâmicas para cerimônias religiosas. O encontro dos dois vai levar a um relacionamento no qual ambos tentarão superar os retrocessos de suas existências para entrar em uma nova fase na vida. Em Hotaru, Kawase investiga temas como tradição e memória, tentando aos poucos penetrar no mundo interior de seus personagens.Festivais e prêmios: Melhor Atriz, Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, 2001. Prêmio CICAE, Prémio FIPRESCI, Festival Internacional de Cinema de Locarno, 2000.

Hush! (ídem) 2001, 135min, 35mm, 12 anosDir. Ryosuke HashiguchiNaoya vive uma vida auto-centrada como um homem gay assumido, até que em uma casualidade conhece Katsuhiro e se apaixona. Asako, uma mulher psicologicamente frágil que deseja ter um filho, conhece os dois por acaso em um restaurante e vê, em Katsuhiro, o pai ideal. Ela então propõe que concebam, juntos, uma criança. Naoya opõe-se à idéia, e se irrita com Katsuhiro, que sempre escondeu sua homossexualidade e não consegue se decidir. A já complexa relação entre os três vai ser colocada em xeque com a visita inesperada da família de Katsuhiro.Hashigushi consegue fazer justiça a todas as suas personagens e às muitas linhas narrativas e temas. Vemos os três protagonistas se separarem, antes que suas vidas se cruzem novamente. Naoya trabalha em uma pet shop e freqüenta bares e boates gays, mas tem a sensação de que falta algo em sua vida relaxada e um tanto quanto egoísta. Quando conhece Katsuhiro, ele se apaixona. Katsuhiro esconde sua homossexualidade de sua família e amigos, inclusive de um colega, que está apaixonado por ele. A terceira protagonista é Asako, uma mulher com um histórico de doença mental e desejo por crianças. Quando Katsuhiro a trata de forma paternal em um encontro muito breve em um restaurante, ela decide que ele seria o pai ideal. Seu desejo, é claro, causa problemas no relacionamento entre Naoya e Katsuhiro. O complexo relacionamento triangular atinge um clímax cômico e trágico durante uma visita inesperada da família de Katsuhiro. Ryosuke realizou um melodrama cativante e em muitos momentos cômico sobre relacionamentos (homossexuais), amizade, solidão e família. Uma mulher decide que quer ter um filho com um homem gay. O que o namorado dela vai achar disso? O que é uma família? Como nós reconhecemos uma? São duas das questões colocadas por "Hush!". Em uma sociedade que não encontra mais segurança nas antigas tradições, três pessoas solitárias tentam criar uma definição de família, na qual possam acreditar.

It's Only Talk (Yawarakai Seikatsu)2005, 126 min, 16 anosDir: Ryuichi HirokiYuko, uma mulher solteira e desempregada que passa por um período de depressão, divide seu tempo entre alguns amigos homens, cada um com seu estilo próprio. Para conviver com cada um deles, ela adapta sua própria personalidade, atuando de diferentes formas dependendo de quem está por perto, o que acaba escondendo de todos como ela realmente é.Tendo o vídeo digital com meio para apresentar a personagem Yuko, o filme revela problemas reais e contemporâneos. As emoções da mulher japonesa de trinta e poucos anos, que considera o fato de uma mulher seguir carreira profissional tão apelativo quanto ser uma dona de casa à parte do mundo, fazendo com que ela encare a total falta de alternativas e o medo do relacionamento e da intimidade. Um filme leve sobre uma mulher independente que tem um problema não tão leve assim. Yuko tem quatro amantes.

No One's Ark (Baka no Hakobune)2002, 111min, 35mm, 12 anosDir. Nobuhiro YamashitaO jovem Daisuke e sua namorada, Hisako, deixam Tóquio e vão para a pequena cidade natal de Daisuke, tentar convencer a população local a consumir uma bebida saudável que, por causa de seu horrível sabor, eles não conseguem vender em Tóquio. Mas nem sua própria família e seus colegas de infância se empolgam com a empreitada dos dois. Ambientado no início da década de 90, o filme mostra, com toques de humor, a dificuldade das novas gerações em achar um lugar na economia de seu país."Se Jarmusch reencarnasse como um japonês de vinte-e-poucos anos, ele filmaria No One's Ark", escreveu um crítico. Observações aguçadas e boas piadas mostrando uma crise como pano de fundo.

Otakus in Love (Koi no Mon)2004, 116 min, 35mm, 12 anos Dir. Matsuo SuzukiMon, um pobre artesão que desenha mangás em pedras, ao recolher uma pedra no chão tem sua mão pisada pelo salto do sapato de Koi, uma garota viciada em cosplay e popular criadora de mangas para meninas. Koi, na mesma hora, se sente atraída pelo rapaz, que continua interessado na pedra. Passeando pelo universo extremamente popular do mangá no Japão, o filme narra a relação tortuosa dos dois, onde opostos se atraem, mas também se repelem.Por ser baseado em um "manga" de Hanyunyuu Jun, o filme apresenta uma série de piadas internas dos adeptos leitores de "mangas" populares.

Ping Pong (Ping Pong)2002, 114 min, 35 mm, 12 anosDir. Fumihiro Masuri (Sori)Amigos de longa-data, Peco e Smile chegaram a uma encruzilhada. Smile é o melhor jogador, mas perde constantemente para Peco, devido a um deturpado senso de amizade. Com a possibilidade dos dois se encontrarem na final de uma importante competição, a rígida técnica Obaba pressiona Peco: é hora de impor-se ou desistir. Para Smile, impor-se é duro, para Peco, desistir é quase impossível.

Tokyo Noir (Tokyo Noir)2004, 127 min, 35 mm, 18 anosDir: Masato Ishioka, Naoto KumazawaUma coletânea com três histórias curtas sobre a vida de três mulheres vivendo em Tóquio e suas diferentes atitudes em relação ao sexo. Um filme onde o erotismo é utilizado como uma ferramenta para delinear os traços psicológicos das personagens e contextualizar o momento em que vivem.

Vibrator (Vibrator)2003, 95 min, 35 mm, 16 anosDir: Ryuichi HirokiRei Hayakawa, uma escritora independente, tem o dom de ouvir vozes dentro de sua cabeça. Mas as vozes lhe causam dor: elas a preocupam, dificultam seu sono, a levam a beber e causam desordens alimentares. Uma noite, em uma loja de conveniência, com as vozes mais altas que nunca em sua cabeça, ela conhece um motorista de caminhão. Ela decide embarcar com ele em uma viagem e, enquanto seu corpo se rende às vibrações do caminhão, vai aos poucos se libertando das vozes em sua cabeça.Com este filme, Ryuichi(mesmo diretor de It's Only Talk e co-diretor de Female),explora esta 'geração perdida', tema que abordará também em "It's Only Talk", simbolizada por vidas conturbadas e futuro incerto. Questionado sobre o sucesso do filme em vários festivais internacionais, inclusive por ter sido eleito o melhor filme de 2003 pela crítica, Ryiuchi credita o fato ao filme tratar de questões basicamente femininas e à maneira como elas são descritas, aliado à curiosidade masculina em entender o universo feminino." (extraído da programação oficial do evento)

sexta-feira, junho 23, 2006

O OLHO

Este é um dos mais originais cartazes de todos os tempos. O Festival Internacional de Cine Erótico de Barcelona irá realizar esse ano a sua décima quarta edição, mas ainda não conseguiu superar a criatividade desta peça que conseguiu unir com maestria as idéias de visão cinematográfica e erotismo, que é o tema predominante dos filmes apresentados no evento. Uma idéia explícita, expressa de forma implícita e que não choca nenhuma platéia, pois as crianças enxergarão como um olho, enquanto que os adultos vislumbrarão o real sentido da imagem. Genial!

quarta-feira, junho 21, 2006

TRÊS PERSONAGENS EM CONFLITO

ANTARES.Austria, 2004. De: Götz Spielmann. Com: Petra Morzé, Andréas Patton, Harry Priz, susanne Wuest, Dennis Cubic, Andréas Kiendl, Martina Zinner. A/DR. Visto em 19/06. 105 min
Inédito no Brasil, ANTARES é mais um forte, vigoroso e ousado representante do novo cinema vindo da Áustria. Mostrando invejável domínio de cena, o diretor Spielmann costura habilmente três histórias independentes, cujos personagens somente têm em comum o endereço: residem num amplo e populoso condomínio formado por edifícios e situado no subúrbio. Durante toda a trama eles se esbarram por alguns instantes, interferindo superficialmente ou participando como coadjuvantes dos outros segmentos graças ao bem elaborado roteiro, que relata de forma crua e direta momentos de intenso conflito vivido por três personagens. A primeira é uma enfermeira, casada e mãe de uma adolescente, que entrega-se sem limites aos jogos sexuais propostos por um homem de quem nem sabe o nome. A temperatura sobe e assim como outras produções austríacas recentes (Dog Days e outros), o sexo é praticamente explícito. No segundo segmento, temos uma jovem caixa de supermercado ávida para realizar o sonho de ser mãe e insegura quanto a fidelidade do namorado. O último protagonista é um corretor de imóveis instável e violento que faz de tudo para readquirir o amor da esposa e o respeito do filho pequeno. Apesar de independentes, as histórias complementam-se por expor as reações inusitadas de pessoas comuns diante de situações limites. Contando com um excelente e corajoso elenco, o filme prende a atenção desde o começo e chama a atenção para liberalidade e tolerância do povo austríaco. No primeiro segmento, por exemplo, a filha adolescente da enfermeira é lésbica e o fato é tratado com extrema naturalidade pelos pais, fato raro para os nossos ultrapassados padrões latinos.

sábado, junho 17, 2006

OS VIVOS E OS MORTOS

LAD DE SMA BORN
Idem. Dinamarca, 2004. De: Paprika Steen. Com: Sofie Gråbøl, Mikael Birkkjær, Laura Christensen, Lars Brygmann, Karen-Lise Mynster, Søren Pilmark, Lena Endre. A/DR. 104 min.
Será que os seres humanos são capazes de superar as perdas impostas pela vida? É a pergunta que o filme procura a todo instante responder. Seja através do casal principal, que perde a filha única num trágico atropelamento e não consegue reconstruir a vida; no casal formado por Nisse e Vivi, que ao optar por uma vida sexual mais intensa, deixou o tempo passar e perdeu a chance de ter filhos; na figura da jovem mãe solteira que perdeu a oportunidade de dar um lar digno ao seu bebê e vive sob a tutela da assistência social; e na figura patética e sofrida da corretora de imóveis que separou-se do marido, tornou-se alcoólatra e provocou a morte acidental de uma criança. São perdas e danos irreversíveis que pairam sobre as cabeças de cidadão comuns, perdidos no meio de sentimentos adversos, dúvidas recorrentes e sofrimento intenso.
Essa colcha de retalhos tecida por pequenas e intensas tragédias humanas compõem a poderosa estréia por trás das câmeras da atriz dinamarquesa Paprika Steen, musa do movimento Dogma 95, onde estrelou “Festa de Família” e fez uma pequena participação em “Os Idiotas” de Lars Von Trier. Loira e boa atriz, ela demonstra segurança e competência num filme denso, sem concessões e apoiado por um elenco primoroso. Vale destacar a contida interpretação do ator Mikael Birkkjaer (que havia visto antes no filme Oh Happy Days, no apagado papel de marido da protagonista), que centraliza no olhar marejado toda a dor e a fúria sentidas pela perda da filha única; e a atriz Karen-Lise Mynster, que foi protagonista no filme de estréia de Liv Ullman (Sofie), e aqui rouba a cena como a mulher responsável pelo atropelamento fatal da filha única do casal central (essa cena não é mostrada, pois o filme começa cinco meses após esse incidente), uma alcoólatra inconveniente que vive marcando encontros infrutíferos com estranhos, para aplacar a solidão e manter a sanidade mental. Ela trabalha como corretora de imóveis e todas as manhãs, antes de sair para a labuta diária, ensaia um sorriso mecânico diante do espelho e decora frases de efeito para vestir o personagem da profissional simpática e equilibrada que há muito deixou de ser.
Duas cenas merecem destaque: a bestial vingança perpetrada pelo pai contra a corretora e o belo final onde o casal tenta trocar de carro, por considerá-lo grande demais para apenas duas pessoas, e a esposa chora e fala pela primeira vez sobre a perda da filha, diante de um atônito vendedor de carros. Este, aliás, é responsável pela frase que irá nortear a vida do casal: - Carros grandes são bons para realizar viagens longas. O casal se entreolha, desiste da compra, entra no carro decidido a recomeçar e a câmera os acompanha distanciando-se pelas ruas da cidade. Os letreiros sobem e ao fundo ouvimos a música “Loosing my Religion” (do REM) na voz sensual de Nina Parssons, vocalista da banda nórdica The Cardingans. Belo e tocante.

quinta-feira, junho 15, 2006

AME-O OU DEIXE-O

SALVE-SE QUEM PUDER – A VIDA
Sauve qui peut – La vie. França,1980. De: Jean-Luc Godard. Com: Isabelle Huppert, Jacques Dutronc, Nathalie Baye. A/DR. 87 min.
Não procurem compreender a obra de Jean-Luc Godard, no máximo tentem apreciá-la. Herméticos, inovadores e contestadores são alguns dos adjetivos que acompanham os filmes deste iconoclasta surgido na década de cinqüenta em pleno berço intelectual francês e que, de lá para cá, tem deixado marcas indeléveis na arte cinematográfica. O seu compromisso desde o início foi “desconstruir” a forma tradicional de fazer cinema, desenvolvendo narrativas sem compromisso com a linearidade, repletas de frases desconexas, cenas inusitadas e críticas explícitas a própria arte de filmar.
Após a fase áurea do seu cinema, que compreendeu toda a década de 60, Godard dedicou-se a um período de experimentações audiovisuais nos anos 70, onde desenvolveu projetos inovadores em vídeo, realizados em parceria com Anne-Marie Miéville. Com a chegada dos anos oitenta, o contestador mais uma vez surpreende e retorna ao cinema ficcional com esta obra interessante e que nada deixa a dever aos seus primeiros trabalhos. De cara, concorreu a Palma de Ouro em Cannes e deu a Nathalie Baye o César de melhor atriz coadjuvante.
O filme acompanha três personagens: a mulher urbana (Baye, jovem e carismática) que viaja para o campo para filmar e montar um documentário; o namorado desta (Dutronc, cantor e ator limitado), que entra em crise com a ausência da amada e funciona como uma espécie de alter ego do diretor dentro da trama, usando o nome de Paul Godard e dando aulas sobre cinema; e a jovem prostituta que trabalha na cidade, mas sonha em comprar uma ampla casa no campo. Durante mais de meia hora acompanhamos as idas e vindas do casal principal que, após esse período, literalmente some da trama dando lugar as desventuras profissionais da prostituta interpretada com frieza e distanciamento por Isabelle Huppert. Neste momento o filme cresce e ganha ritmo, transformando o espectador numa espécie de voyeur desavisado, que observa com surpresa as taras e manias da garota e de seus clientes. Por sinal, Huppert protagoniza duas cenas desconcertantes, recheadas do humor sardônico e cruel de Godard: na primeira, ela dá dicas e verifica a experiência da irmã mais nova, que também decide tornar-se prostituta; na segunda, participa de uma orgia patrocinada por um velho homem de negócios, em companhia de mais duas pessoas, na qual é coagida a emitir sons enquanto pratica sexo grupal e passa baton na boca do velho (!). São sequências ridículas e complexas ao mesmo tempo, capazes de desnudar de forma inequívoca as fraquezas da natureza humana.
Ao final, os três personagens se encontram e o destino impõe as suas regras. A conclusão é satisfatória e termina colocando em cena outros personagens que estavam soltos na trama, caso da irmã da prostituta e da filha do personagem masculino principal. Durante a narrativa, saltam aos olhos as tentativas cênicas do diretor para subverter as regras e expor a fragilidade da linguagem cinematográfica, como no momento em que uma figurante dirige-se a câmera e pergunta sobre a música incidental do filme, que ela não deveria escutar; ou quando a câmera persegue, inadvertidamente, um casal qualquer, colocando em segundo plano o casal principal. São momentos sutis que confundem e irritam os espectadores leigos e fascinam os admiradores deste gênio do inconformismo, que desde o início surgiu para confundir, jamais para explicar.