domingo, julho 01, 2007

O PEQUENO CÉU

O PEQUENO CÉU
El Cielito. Argentina, 2004. De: Maria Victoria Menis. Com: Leonardo Ramirez, Mônica Lairana, Dario Levy, Rodrigo Silva. L/DR. 93 min. Comentário:
Que filme, que filme! Daquelas obras que assitimos ao acaso, sem referências ou expectativa alguma e que nos arrebata de maneira irreversível. Mais uma prova cabal do grau de excelência dos novos realizadores argentinos. Com um estilo minimalista, de pouquíssimos diálogos e muita sensibilidade, a diretora compensa habilmente os parcos recursos que tem com o ótimo elenco e as belas paisagens naturais. Ela narra a singela história de Félix, jovem andarilho de vinte e poucos anos, de quem não sabemos o passado e cujo futuro é incerto. Ao pular de um trem em movimento, onde viajava clandestino, vai parar numa estação perdida no interior da Argentina. Sem dinheiro e rumo incerto, o rapaz puxa conversa com Roberto, homem marcado pelo tempo e vestido de maneira desleixada, com o objetivo claro de comer os restos de comida deixados pelo homem sobre o balcão do bar.
No segundo encontro dos dois, Roberto convida o andarilho para laborar em sua pequena propriedade rural, ajudando na colheita de frutas silvestres, plantadas e comercializadas de forma improvisada em bancas de madeira colocadas estrategicamente à beira da estrada. Félix prontamente aceita a oferta e vai viver com o agricultor e sua pequena família, formada pela sofrida e submissa esposa Mercedes e o gracioso Chango, filho do casal de poucos meses de vida. A empatia entre Félix e o bebê é instantânea e o rapaz de olhos tristes passa a ter os dias preenchidos pelo sorriso doce e farto daquele pequeno ser. Mas nem tudo são flores, e o ambiente de paz começa a ficar tenso com a forma violenta e gratuita com que Roberto trata a mulher, imprimindo um rol quase que diário de tapas, chutes e palavras de baixo calão, potencializadas pelo vício alcoólico do homem.
Certo dia, Mercedes some. Suicídio ou fuga? O roteiro não explicita, mas deixa pistas sobre o destino da mulher ao mostrar as suas vestes desarrumadas no guarda-roupa, assim como a mala intacta sob a cama. Apreensivo sobre o futuro de Chango e certo que Mercedes não irá mais voltar, Félix rouba algum dinheiro e parte com o menino para Buenos Aires, deixando para trás Roberto incosciente e totalmente consumido pelo vício da bebida. No trem, Félix observa as imagens do povo pobre e sofrido que vive no interior e que guarda muitas semelhanças com a nossa brava gente brasileira. Nesse momento, ele recorda da sua infância feliz ao lado de uma mulher idosa, que poderia ser sua mãe e/ou avó (isso nunca fica claro). Ao fundo, pontuando esse momento de pura emoção, ouvimos a bela música “El Jangadeiro” na voz da cantora Liliana Herrera, uma espécie de Elis Regina local.
Ao chegar a capital, Félix prontamente se hospeda num hotel barato e vive dias de intensa harmonia ao lado de Chango. Mas o dinheiro acaba e os dois são despejados. Sem perspectivas, vão parar na rua como indigentes, sobrevivendo de esmolas e dormindo ao léu, esquivando-se das rondas policiais e dos olhares gananciosos dos marginais de plantão. Desesperado, Félix é cooptado por um deliqüente de rua que vive de pequenos golpes e aceita participar de um roubo, em troca de guarita e comida. Pela primeira vez em dias, ele deixa Chango sob os cuidados de outra pessoa, a irmã do deliqüente, e despede-se do menino prometendo voltar. Mas a sua promessa não se concretiza e o rapaz termina prostrado ao chão, abatido por uma bala. Ao olhar para o céu, percebe-se no canto da sua boca o esboço de um pequeno sorriso, pois em meio as estrelas ele consegue ver refletido o rosto da mulher que o criou e a figura terna do pequeno Chango. Tocante.
A trajetória pontuada pela angústia e repressão social enfrentada pelo personagem Félix na segunda metade do filme, nos remete muito a via crucis inexorável do pai deseperado no clássico do neorrealismo italiano “Ladrões de Bicicleta”. A própria “naturalidade” do elenco amador e das locações fazem de “Pequeno Céu” um exemplar moderno do cinema italiano realizado no pós-guerra, com pouco dinheiro e forte apelo crítico-social. Sinal inequívoco de que beber na fonte do passado não gera somente obras anacrônicas, mas sim fitas realistas, que driblam a falta de recursos com criatividade e, sobretudo, sensibilidade. O filme recebeu vários prêmios no Festival de San Sebástian e no Festival de Havana. Trata-se do terceiro longa-metragem da diretora Maria Victoria Menis, que estreou em 89 e divide o seu tempo também escrevendo e dirigindo para a TV.

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