quinta-feira, junho 15, 2006

AME-O OU DEIXE-O

SALVE-SE QUEM PUDER – A VIDA
Sauve qui peut – La vie. França,1980. De: Jean-Luc Godard. Com: Isabelle Huppert, Jacques Dutronc, Nathalie Baye. A/DR. 87 min.
Não procurem compreender a obra de Jean-Luc Godard, no máximo tentem apreciá-la. Herméticos, inovadores e contestadores são alguns dos adjetivos que acompanham os filmes deste iconoclasta surgido na década de cinqüenta em pleno berço intelectual francês e que, de lá para cá, tem deixado marcas indeléveis na arte cinematográfica. O seu compromisso desde o início foi “desconstruir” a forma tradicional de fazer cinema, desenvolvendo narrativas sem compromisso com a linearidade, repletas de frases desconexas, cenas inusitadas e críticas explícitas a própria arte de filmar.
Após a fase áurea do seu cinema, que compreendeu toda a década de 60, Godard dedicou-se a um período de experimentações audiovisuais nos anos 70, onde desenvolveu projetos inovadores em vídeo, realizados em parceria com Anne-Marie Miéville. Com a chegada dos anos oitenta, o contestador mais uma vez surpreende e retorna ao cinema ficcional com esta obra interessante e que nada deixa a dever aos seus primeiros trabalhos. De cara, concorreu a Palma de Ouro em Cannes e deu a Nathalie Baye o César de melhor atriz coadjuvante.
O filme acompanha três personagens: a mulher urbana (Baye, jovem e carismática) que viaja para o campo para filmar e montar um documentário; o namorado desta (Dutronc, cantor e ator limitado), que entra em crise com a ausência da amada e funciona como uma espécie de alter ego do diretor dentro da trama, usando o nome de Paul Godard e dando aulas sobre cinema; e a jovem prostituta que trabalha na cidade, mas sonha em comprar uma ampla casa no campo. Durante mais de meia hora acompanhamos as idas e vindas do casal principal que, após esse período, literalmente some da trama dando lugar as desventuras profissionais da prostituta interpretada com frieza e distanciamento por Isabelle Huppert. Neste momento o filme cresce e ganha ritmo, transformando o espectador numa espécie de voyeur desavisado, que observa com surpresa as taras e manias da garota e de seus clientes. Por sinal, Huppert protagoniza duas cenas desconcertantes, recheadas do humor sardônico e cruel de Godard: na primeira, ela dá dicas e verifica a experiência da irmã mais nova, que também decide tornar-se prostituta; na segunda, participa de uma orgia patrocinada por um velho homem de negócios, em companhia de mais duas pessoas, na qual é coagida a emitir sons enquanto pratica sexo grupal e passa baton na boca do velho (!). São sequências ridículas e complexas ao mesmo tempo, capazes de desnudar de forma inequívoca as fraquezas da natureza humana.
Ao final, os três personagens se encontram e o destino impõe as suas regras. A conclusão é satisfatória e termina colocando em cena outros personagens que estavam soltos na trama, caso da irmã da prostituta e da filha do personagem masculino principal. Durante a narrativa, saltam aos olhos as tentativas cênicas do diretor para subverter as regras e expor a fragilidade da linguagem cinematográfica, como no momento em que uma figurante dirige-se a câmera e pergunta sobre a música incidental do filme, que ela não deveria escutar; ou quando a câmera persegue, inadvertidamente, um casal qualquer, colocando em segundo plano o casal principal. São momentos sutis que confundem e irritam os espectadores leigos e fascinam os admiradores deste gênio do inconformismo, que desde o início surgiu para confundir, jamais para explicar.

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